A poética do invisível na pintura com luz 

As atividades propostas nesse artigo têm como objetivo ampliar a aplicação da pintura com luz nos meios educacionais e terapêuticos, e assim permitir que as crianças e pessoas idosas exercitem, sem a necessidade de sair de casa, a atenção, a memória, o raciocínio lógico, a criatividade e as funções executivas. E claro, se divertir!!

A poética do invisível na pintura com luz

Pintura com sangue em cavernas, óleo sobre tela ou luz no espaço escuro, são formas de arte que podem ser consideradas uma necessidade do ser humano, uma necessidade de expressão, que surge como resultado da relação do indivíduo com o mundo que o cerca.

Há milhares de anos, nossos ancestrais utilizavam sangue para criar imagens em cavernas, como formas de rituais e para contar e lembrar de histórias. Mas será que era só isso? Será que não pintavam para se divertir também? Isso é impossível saber, mas por outro lado, é certo que as pessoas têm tendência natural a criar imagens, a rabiscar papéis, paredes ou telas. Desde a infância, de maneira natural, a tendência em criar imagens transpassa a fase adulta como passatempo, profissão ou terapia.

 

 

Já se sabe há muito tempo que a arte é capaz de criar uma conexão interna, de desacelerar o tempo e trazer a consciência à tona. De todas as linguagens artísticas visuais existentes até hoje na história da arte, todas são possíveis de visualizar a construção da imagem, é possível apreciar e analisar um desenho a lápis ou pintura em tela enquanto se faz: do início ao fim a visão acompanha e guia o processo, simples assim.

No entanto, pintar com luz é diferente, você não vê o que está fazendo, é apenas uma projeção mental planejada anteriormente, e capturada pela câmera enquanto se cria movimentos de uma lanterna no espaço/tempo escuro. Somente quando finaliza a pintura é que se vê o resultado. Esta ação invisível e consciente é capaz de estimular habilidades cognitivas simultaneamente, como a tomada de decisão, atenção, concentração, a fluência da memória, além de ser muito divertido!

A Lightpaint possui muitas entrelinhas no processo, integrando a luz, o tempo, cores, espaço, movimento, figuras de fantasia e o desenhar sem ver. Lidar com todos esses elementos juntos ao mesmo tempo, se torna uma combinação perfeita para atividades com fortes estímulos cognitivos para crianças e idosos!

Quando a criança não é estimulada devidamente, ela terá dificuldade em formar conexões entre os neurônios e por consequência terá o aprendizado comprometido. Por outro lado, se a criança é sobrecarregada com muitos estímulos, ela cria muitas conexões, muitos caminhos para os neurônios e a mente pode ter dificuldade em saber qual seguir, afetando diretamente a tomada de decisão. E, sem saber decidir, todas as outras ações serão desconexas e sem sentido, porque é justamente na infância que se formam as raízes neurológicas e biológicas que serão a base cognitiva do adulto. Essa sobrecarga de estímulos causa problemas na tomada de decisão, iniciativa, persistência, concentração, atenção e interação social.

Já com os idosos, sua relação com a tecnologia ocorre de forma diferente. Eles são pouco estimulados em um momento da vida em que o cérebro começa a perder as conexões e começam a ocorrer as demências. Uma geração de “pais órfãos de filhos vivos”, que exclui a presença a troco de nada e dificulta o compartilhamento de valores e interesses, o que resulta na afirmação das individualidades e na vida familiar focada nos mais jovens. O abandono parental causa problemas como stress, ansiedade, depressão e pode até levar ao suicídio.  

Pensando nisso, listei as 3 habilidades principais que podem ser desenvolvidas com light painting, utilizando câmeras ou celulares, e que podem ser aplicadas como estímulo cognitivo em atividades lúdicas com crianças e idosos, em escolas, salas de arte ou até mesmo em casa.

1-Memória cinestésica:

Capacidade reter e de armazenar experiências anteriores para se realizar movimentos motores necessários à realização gráfica, desenho ou escrita. É a projeção do universo simbólico mental, através dos traços de luz capturados pela câmera. É também uma forma de memorizar imagens.

Em um mundo extremamente acelerado, vemos mais de 2000 imagens por dia, sem memorizar, apenas olhando de forma passiva, de forma rápida, sem se atentar aos detalhes, a mensagem e ao processo. Mas ao pintar com luz, uma pintura invisível e consciente, cria-se um processo mental de memorização de imagens, fazendo novas conexões sinápticas, fazendo com que a mente trabalhe de forma mais rápida e precisa, estimulando-a e fortalecendo a tomada de decisão, a concentração contínua, atenção ao ambiente externo e imagem mental. São habilidades que favorecem a imaginação e criatividade.

2 – Percepção Espaço/temporal:

Habilidade de se orientar no espaço escuro em relação a si próprio, numa relação entre o corpo, o meio e a realização consciente dos movimentos

Espaço é tudo aquilo que nos rodeia, o ambiente como um todo e suas partes, os objetos, as pessoas, os obstáculos e as fontes de luz. Pintar com luz estimula a habilidade de percepção dos elementos do ambiente e como eles se relacionam.

Da mesma forma, o espaço também faz parte do nosso pensamento, onde reunimos as ideias e experiências, onde a habilidade cognitiva espacial nos permite perceber o entorno através de distâncias, formas e tamanhos.

3- Coordenação viso-motora:

Trata da integração entre as informações visuais e o movimento do corpo. É uma habilidade essencial para atividades diárias, como escrever, desenhar, brincar, se vestir, trabalhar, entre outras tarefas. O estímulo dessa habilidade impacta diretamente a autonomia e consciência corporal.

EXERCÍCIOS E RESULTADOS

Realizamos uma série de oficinas de pintura com luz com 100 crianças da rede pública de ensino e 30 idosos de uma casa de acolhimento, na cidade de Leme (SP, Brasil), nas quais foi proposto um exercício por semana durante 6 meses.
Os exercícios variavam entre duas técnicas principais, a técnica de iluminar objetos, pessoas e cenários, onde a pessoa permanece de costas para a câmera que captura somente aquilo que for iluminado. A outra técnica é o traço de luz, quando a lanterna é apontada para câmera criando linhas, formas e efeitos.

A técnica de iluminação estimula a orientação espacial enquanto a técnica de traço estimula a memória de curto prazo, e as duas técnicas juntas estimulam todo um sistema cognitivo que vou procurar exemplificar através de alguns exercícios:

Exercícios de iluminação de pessoas – permite entender o princípio da fotografia, que se trata do registro da luz feito pela câmera, mas de maneira criativa, possibilitando duplicar pessoas ou partes do corpo na mesma imagem. Esse exercício estimula a sensibilidade estética ao criar volumes entre luz e sombra, através dos movimentos feitos com a fonte de luz.

– Exercícios de iluminação com objetos – Os exercícios com objetos possuem muitas vantagens, pois podemos manusear de várias formas e realizar a pinturas muitas vezes na mesma posição. Os exercícios com objetos permitem abordar conceitos da natureza morta, um gênero da arte que deriva do holandês “stilleven”, em inglês “still-life” que significa composição de seres inanimados, silenciosos, discretos, incapazes de movimento.

A prática da pintura com luz com esse gênero da arte permite identificar as nuances da volumetria com mais tranquilidade, já que os objetos não cansam de ficar na mesma posição, e isso permite realizar a mesma foto várias vezes (figura 1).

Com natureza morta é possível estudar a diferença das cores numa composição, incluir uma fonte de luz interna como o fogo, por exemplo (figura 2), tornar um objeto transparente revelando seu conteúdo interno (figura 3), duplicando o mesmo objeto na cena, estimulando a memória e a motricidade ao mesmo tempo.

Figura 1 

Figura 2

Figura 3             

 Figura 4

Exercícios com traços de luz – para criar linhas e formas é preciso apontar a lanterna para a câmera, diferente da iluminação de objetos e pessoas. Nesse caso, o exercício visa a ação de criar figuras da mente para a câmera, estimulando a memória de curto prazo.

O exercício começa com formas geométricas básicas (figura 5) para se criar uma noção de espaço e tamanho do desenho pensado e projetado. Em seguida é proposto exercícios que utilizem das formas básicas para criar formas figurativas mais complexas (figura 6), e que tenham uma relação com a composição, usando objeto como referência espacial (figura 7).

Outro exercício com traços que pode estimular a orientação espacial é a escrita do nome, pois deve-se escrever da direita para a esquerda com as letras espelhadas (figura 8).

Jogos também podem ser incluídos nesses exercícios, como o jogo da velha, por exemplo. Em duas pessoas, cria-se a tabuleiro e depois inicia-se o jogo (figura 9).  

 Figura 5

Figura 6

 Figura 7

 Figura 8

 Figura 9

– Exercícios de memorização de imagens – fazer arte, qualquer que seja a linguagem, depende muito da memória iconográfica, aquela que lembra dos símbolos, sinais, proporções e formas complexas.

Esse exercício proposto foi criado para auxiliar no processo de aprendizagem da pintura com luz, mas também estimular a memória de curto e longo prazo. Lembrando que em uma oficina de light paint com prática terapêutica com crianças, adultos ou idosos, é importante considerar que ocorrem vários estímulos ao mesmo tempo, portanto, muitas habilidades podem ser estimuladas simultaneamente, por isso a necessidade de conhecer as habilidades que podem ser desenvolvidas para estar atento quando elas surgirem no processo de aprendizado.

Para facilitar a compreensão desse exercício que estimula a capacidade de memorizar imagens, separei em etapas conforme o passo a passo a seguir:

ETAPA 1 –  O desenho é feito a lápis no papel, seguindo um passo a passo. Com isso o aluno decora todas as partes da imagem em sequência, sendo capaz de imaginar o todo e as partes;

ETAPA 2 – O aluno reproduz a mesma imagem sem visualizar a imagem original, como forma de provocar novas conexões no cérebro como forma de estimular e reter a memória de curto prazo.

ETAPA 3 – Com os olhos fechados, faz novamente o mesmo desenho, e nesse casso não importa se o resultado ficar todo desmontado com as partes fora do lugar, o mais importante é lembrar de todas as partes;

ETAPA 4 – Em seguida, faz o mesmo desenho em tamanho maior, numa lousa. Este processo estimula a memória muscular, é como se o movimento do braço auxiliasse a memória também, assim como acontece no esporte ou quando dirigimos, por exemplo.

ETAPA 5 – Finalmente, a pintura com luz. Nessa fase do processo o aluno já possui a imagem na mente e a memória muscular, chamada “Ação Psicossomática”, quando há um alinhamento entre mente e corpo na mesma ação.

Análise dos resultados

As habilidades observadas com a prática de light painting são as mais diversas: estimula a atenção e concentração, interação social, a imaginação e criatividade, a capacidade de fantasiar, a memória iconográfica e espacial. Os alunos compreendem que podem aprender brincando e como o aprendizado é retido na mente.

Observo que as crianças passam a ter mais interesse em novos temas e conseguem se aprofundar em conteúdos complexos, desenvolvendo autonomia para expor ideias e sentimentos. São habilidades que vão favorecer o processo de amadurecimento e autoconhecimento. 

Tanto as crianças como idosos, compreendem e consideram a memória como um elemento que permeia a atividade, sentem como ela é estimulada e a forma como é utilizada numa atividade. A partir dessa consciência em relação à memória, compreendem como ela afeta a rotina diária e as tarefas básicas, levando em consideração que ao ter uma memória mais saudável, as tarefas do dia passam a ser realizadas com mais prazer e alegria.

As entrelinhas de um processo invisível.

A pintura com luz ocorre dentro de um determinado tempo/espaço, em uma ação ininterrupta, como se a imagem total na mente fosse sendo descarregada em partes, da mente para a mão e da lanterna para a câmera, e somente quando terminar a pintura é que se pode ver o resultado.

Pelo simples fato de não se ver a pintura enquanto se faz, acontece algo incrível na mente, que faz uma enorme diferença para quem está atento às entrelinhas. Nesse momento não ocorre julgamento, pois não há comparação e, consequentemente, não há auto sabotagem. A ação acontece “sem filtro”, ou seja, é a projeção mais natural e real do movimento do corpo no tempo e no espaço através da luz. 

A comparação é um processo mental que ocorre no sistema límbico cerebral, responsável por transformar as ações do corpo em simbolismos e memorizar por associações para recordar as informações difíceis de reter. O sistema límbico possui um certo grau de plasticidade do comportamento, sendo responsável pelo comportamento emocional, aprendizado e solução de problemas com base na experiência imediata.

A partir de todo esse conjunto de exercícios mentais e corporais, pode se dizer que pintar com luz estimula a percepção do aqui e agora, associada à noção de ação-reação, atenção plena e máxima concentração.

A mesma prática pode ser feita com crianças, adultos e idosos, adaptando as imagens propostas nos exercícios de acordo com a cultura de cada pessoa.

A pintura com luz ajuda a desenvolver a interpretação, integração e organização dos dados sensoriais captados pela visão. É quando mentalizamos a imagem total e planejamos a sequência em que irá ser realizada, desde o início até o final. E quanto maior o tempo de pintura, mais estímulos cognitivos estão sendo provocados.

Incluir a pintura com luz nas escolas e incentivar como atividade lúdica em casa, abre caminhos para novas formas de reconstrução do processo de aprendizagem e relacionamento entre alunos e professores, pais e filhos, e entre amigos. Uma atividade que, além de ser divertida, estimula o cognitivo, preserva a memória e auxilia na relação com as pessoas e o ambiente.

Na EFA – Espaço Fabio Andrade, as atividades de lightpaint são aplicadas juntamente com outras linguagens das artes visuais, como o desenho, pintura, colagem e escultura, onde os alunos têm a possibilidade de experimentar técnicas e materiais diferentes, criando uma relação de equilíbrio entre o real e o virtual, utilizando a tecnologia em prol da saúde mental.

No total são 180 alunos que frequentam a escola uma vez por semana, com 3 modos diferentes: como um passatempo, para se profissionalizar ou como terapia. Em todos os modos são observadas várias habilidades que surgem a partir do contato com a arte.

As aulas de light painting costumam ter mais envolvimento por parte dos alunos por ser algo novo, diferente do desenho à lápis ou pintura em tela, mas também pelo fácil acesso devido ao celular ter a configuração para longa exposição ou aplicativos. Nesse ponto, a pintura com luz se enquadra como uma atividade fundamental capaz de equilibrar o vínculo social e o tecnológico na mesma ação, utilizando dos recursos digitais, mas com estímulo cognitivo, não somente como passa tempo, vagando na internet.

O uso rotineiro e excessivo do celular por crianças é uma discussão necessária e atual.
Diversos estudos apontam sintomas e comportamentos como atraso cognitivo, déficit de atenção, problemas de aprendizagem, aumento da impulsividade, ansiedade, distúrbio do sono, conduta agressiva e atrasos no desenvolvimento psicomotor.

É necessário priorizar o uso consciente das tecnologias como ferramenta de estudos e aprimoramento das capacidades cognitivas, manuais e perceptivas, pois, aliada às Artes Visuais, se torna uma ferramenta importantíssima no âmbito da educação visual infantil, representando um estímulo essencial em várias etapas do desenvolvimento.

Através das artes visuais, as crianças trabalham a sua criatividade e imaginação, e conseguem adquirir novas habilidades e novas formas de olhar o mundo. O principal objetivo não é que as crianças valorizem a vertente estética apenas, mas que compreendam que materiais diferentes podem ser transformados e utilizados várias vezes na criação de novos elementos. Aprendem a VER o novo, a se desafiarem e a serem mais assertivos nas tomadas de decisão e consequentemente melhorando a qualidade de vida.

A Arte salva! 

Pinte!

Fabio Andrade

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Lightpaint

LIGHTPAINT

Na busca por um sentido racional da prática da lightpaint, fez-se necessário um estudo holístico dos elementos que permeiam a ação de pintar algo invisível, mas consciente, e que a princípio, não pode ser classificada como apenas uma forma de arte. No entanto, é capaz de unir os conceitos primários das onze formas de arte conhecidas – música, dança, pintura, escultura, teatro, literatura, cinema, fotografia, animação, jogos e arte digital – em uma só ação, simultaneamente.

A ação do desenho no espaço é rítmica e ininterrupta, como a MÚSICA.

Provoca e estimula o movimento corporal no espaço, como a DANÇA.

Propicia a mistura de cores e resulta em imagens figurativas, abstratas ou simbólicas como a PINTURA.

A iluminação com a lanterna possibilita a transformação e a modificação de volumes estruturais, como a ESCULTURA.

Favorece a representação imagética de movimentos históricos, literários e artísticos, através de cenários, personagens e contextos, como o TEATRO.

 

Bebe da fonte da LITERATURA escrita como recurso persuasivo para reprodução imagética.

Com a utilização de um software específico promove a atividade de pintura com luz em tempo real em vídeo, como no CINEMA.

Dispõe de uma imagem estática resultante da movimentação da luz no espaço, proveniente da FOTOGRAFIA.

A iluminação com lanterna favorece a reprodução sequencial de pessoas ou objetos caracterizando a ANIMAÇÃO.

Desfruta de atividades físicas e imagéticas ligadas às dinâmicas lúdicas como os JOGOS.

Possibilita a visualização imediata do resultado devido à tecnologia empregada na ARTE DIGITAL.

12ª Arte: A expressão que usa o universo como suporte e material, que projeta da mente através da luz uma imagem conscientemente inconsciente, simbólica, única e expressiva.
A arte que desmaterializa o movimento, que capta a realidade externa baseada na percepção interna.

TURMAS

Pintar é um hábito milenar. 
Uma forma de se comunicar com outras pessoas ou consigo mesmo. 
Desde que o primeiro ser vivo passou a enxergar, a luz se tornou essencial à visão, e a visão fez-se vital à sobrevivência.
Porém, pintar com luz não depende da visão, e sim, da memória e do consciente visual. 
Pintar o que é invisível aos olhos… 
…revela o que está vivo na mente. 
E vice-versa.

E-mail: contato@efa.art.br